G. W. Anderson

Introdução

Muitas versões modernas criaram graves problemas teológicos em Filipenses 2:7. Traduções como Tradução Brasileira, Almeida Revista e Atualizada, Almeida Século 21, Nova Almeida Atualizada, Nova Versão Internacional (em português) e Nova Versão Transformadora [1], afirmam que Jesus “esvaziou-se”, neste versículo. Esta tradução tem produzido numerosos problemas para a igreja cristã.

Muitos tradutores da Bíblia durante e depois da Reforma reconheceram os problemas com a tradução do verbo κενόω (kenoo) como “esvaziou-se”. Homens como William Tyndale, Cranmer, os tradutores da Bíblia de Genebra, os tradutores da Versão Autorizada (King James) e os revisores da Almeida Corrigida Fiel traduziram essa palavra metaforicamente ou figurativamente, em vez de literalmente. Eles, como nós, se esforçam em traduzir “o mais literalmente possível, o mais livre possível”. Até os tradutores do Novo Testamento da edição inglesa New King James Version, seguindo a leitura problemática e incorreta de algumas das versões modernas, até então trazia “esvaziou-se” (foi posteriormente alterada para “fez a si mesmo de nenhuma reputação”).

O problema declarado

Algumas versões modernas tentaram evitar os problemas associados ao “esvaziou-se”. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje traz “abriu mão de tudo o que era seu”; a Almeida Revista e Corrigida e a Bíblia de Jerusalém trazem “aniquilou-se” [2]. Assim, elas tentam expressar a ideia de “tornar nulo” ou “sem efeito”. No entanto, os problemas associados à ideia de tornar alguém “nada” são provavelmente maiores do que os associados ao “esvaziar-se”. [3]

Traduzir kenoo como “esvaziou-se” introduz problemas com os quais os comentaristas liberais, neo-ortodoxos e conservadores têm lutado por anos. As páginas de comentários e Bíblias de estudo anotadas estão cheias de todo tipo de heresia e especulação para tentar responder a essa pergunta. Se for usada a palavra “esvaziou-se”, deve-se perguntar, do que Jesus se esvaziou para poder estar “tomando a forma de servo” (Fp. 2:7)? Várias possibilidades foram apresentadas. Alguns dizem que ele foi esvaziado de sua glória. Outros dizem que era de um ou outro de seus atributos ou habilidades divinas, como privilégios divinos, majestade divina, poder divino e natureza divina, riquezas, seu relacionamento favorável com a lei divina, o uso independente de suas prerrogativas divinas, sua glória ou o glorioso ambiente. Alguns até acreditam que ele se esvaziou completamente de sua deidade ou divindade. Como essas explicações não podem ser encontradas no contexto de Filipenses 2:1-11, o único limite para as especulações é a imaginação. A tradução “fez a si mesmo de nenhuma reputação” elimina a necessidade desses argumentos perturbadores.

Comentaristas reformados

A tradução figurativa de kenoo tem precedência nas Escrituras. Este verbo é encontrado em apenas quatro outras passagens do Novo Testamento: Rm. 4:14 “é aniquilada”; I Co. 1:17 “se faça vã”; I Co. 9:15 “fazer vã”; II Co. 9:3 “seja vã”. Assim, este verbo não é traduzido literalmente como “esvaziou-se” no Novo Testamento. O Dr. Louis Berkhof [4] e o comentarista William Hendriksen [5] reconhecem que o teólogo reformado B. B. Warfield afirmou que a tradução “esvaziou-se” é “uma tradução incorreta”. [6] Esses comentários, juntamente com os de John Murray, são muito mais significativos porque vêm daqueles que não sustentam nem o mesmo texto grego nem a mesma posição da Trinitariana acerca da tradução.

Ponto de Vista de Warfield

B. B. Warfield afirma:

E aqui é importante observar que toda a ação aduzida é assim lançada contra esse pano de fundo – não apenas sua descrição negativa no sentido de que Nosso Senhor (embora tudo o que Deus seja) não olhou com avidez para seu (consequente) ser de igualdade para com Deus; mas também é uma descrição positiva, introduzida pelo “mas […]”, e isso em ambos os seus elementos, não apenas naquele efeito (v. 7) “não fazendo caso de si mesmo” (traduzido corretamente pela Almeida Corrigida Fiel, ele “fez a si mesmo de nenhuma reputação”; mas mui erroneamente traduzida pela Nova Versão Internacional, Almeida Revista e Atualizada e Nova Almeida Atualizada, “esvaziou-se”), porém igualmente no sentido (v. 8) de que “ele se humilhou […]”, em outras palavras, Paulo não ensina que Nosso Senhor já foi Deus, mas tornou-se homem; ele ensina que ele também se tornou homem, embora ele fosse Deus. [7]

O verbo aqui traduzido como “esvaziou-se” está em uso constante num sentido metafórico (no Novo Testamento apenas em: Romanos 4:14; I Coríntios 1:17; 9:15; II Coríntios 9:3) ​​e não pode ser aqui tomado literalmente. Isso fica logo evidente a partir da definição da maneira como é dito que o “esvaziamento” aconteceu, comunicado pela oração modal que é imediatamente anexada: “tomando a forma de servo”. Você não pode “esvaziar” algo “tomando” para si algo — adicionando. É igualmente visível, no entanto, pela força da ênfase que, por sua posição, é lançada sobre o “si mesmo”. Podemos falar de Nosso Senhor no sentido de “esvaziar a si mesmo” de algo mais, porém, dificilmente, com esta força de ênfase, de seu “esvaziar a si mesmo” de algo mais. Este enfático “ele mesmo”, interposto entre a oração anterior e o verbo traduzido como “esvaziou-se”, constrói uma barreira sobre a qual não podemos escalar em sentido contrário, em busca daquilo que Nosso Senhor se esvaziou […] “não fazendo caso de si mesmo”, podemos parafrasear razoavelmente a oração; e, assim, todas as dúvidas sobre aquilo de que Ele se esvaziou, desaparecem. O que Nosso Senhor realmente fez, de acordo com Paulo, é expresso nas orações seguintes; aqueles que não estão diante de nós expressam mais o caráter moral de Seu ato. Ele assumiu “a forma de servo”, portanto, “fazendo-se semelhante aos homens”. [8]

[…] O termo “forma” aqui, é claro, tem o mesmo significado completo que no exemplo anterior de sua ocorrência na frase “em forma de Deus”. Ele confere a qualidade específica, todo o conjunto de características, pelas quais um servo se torna o que conhecemos como servo. Nosso Senhor assumiu, então, de acordo com Paulo, não o mero estado ou condição ou aparência externa de um servo, mas a realidade; ele se tornou um verdadeiro “servo” no mundo. O ato pelo qual ele fez isso, é descrito como algo “tomado”, ou, como se tornou habitual a partir dessa descrição, no sentido de “assumir”. O que se quer dizer é que Nosso Senhor assumiu em sua personalidade uma natureza humana; e, portanto, é imediatamente explicado que ele assumiu a forma de um servo em “fazendo-se semelhante aos homens”. [9]

Concordância de Murray

John Murray afirma que:

Warfield mostrou, com franqueza e convicção que quase não deixa mais nada ainda por dizer, a respeito da tradução do verbo [ἐκένωσε (ekenose)] pela palavra “esvaziar” como uma interpretação errônea, […] Warfield não foi, é claro, o primeiro a reconhecer a verdadeira importância de Filipenses 2:7, mas ninguém organizou os argumentos contra a tradução literal do verbo [ekenose] e em favor da forma figurada, assim como ele fez em relação à concisão e conclusão. O verbo deve, portanto, ser traduzido como “não fazendo caso de si mesmo” e, portanto, “toda a dúvida acerca do que ele se esvaziou, desaparece” ([Warfield, The Person and Work of Christ [A Pessoa e Obra de Cristo]], pp. 42s.) […] É o tipo de exegese que Warfield adota neste artigo que despoja a passagem de todo remanescente da cristologia quenótica. Essa interpretação representa e resume o melhor do pensamento cristão sobre essa passagem, e não há razão para que o texto continue confuso ou obscurecido pela tradução literal do verbo. [10]

Quando lemos que “ele fez a si mesmo de nenhuma reputação”, uma tradução literal seria “ele esvaziou-se”. Mas não há um pingo de boa razão para uma tradução literal. O uso em outra passagem e o contexto aqui exigem a tradução figurada, “não fazendo caso de si mesmo” ou “fez a si mesmo de nenhuma reputação”. Versões que adotaram uma tradução literal impuseram aos leitores uma tradução que ignorou as exigências de uma boa tradução e interpretação e introduziu uma questão que o contexto não exige nem permite. A ideia é simplesmente que Cristo Jesus não fez de si mesmo o exclusivo objeto a absorver o interesse, a preocupação e a atenção. Ele ficou absorto no que diz respeito aos demais. [11]

O problema evitado

A simples tradução “fez a si mesmo de nenhuma reputação” ou “não fazendo caso de si mesmo”, quando combinada com o seguinte particípio modal, resolve facilmente o problema. “Fez a si mesmo de nenhuma reputação, tomando [λαβών(labon), “tomando”] a forma de servo”. Em outras palavras, ele não “esvaziou”; ele “tomou” a forma de homem — ou seja, era totalmente Deus e totalmente homem — Deus manifestado em carne.

A Sociedade Bíblica Trinitariana é dedicada à tradução por equivalência formal. No entanto, como é do conhecimento de qualquer pessoa que tenha lidado com a tradução de um idioma para outro (independentemente de quais sejam estes dois idiomas), expressões idiomáticas, metáforas e linguagem figurada não devem ser traduzidas literalmente. A Almeida Corrigida Fiel e as traduções em muitos outros idiomas, como em inglês, espanhol e hebraico, que seguem a versão conservadora e tradicional desta passagem, evitam numerosos problemas da “teoria da quenose” que são encontrados em muitas das versões modernas. A tradução “fez a si mesmo de nenhuma reputação”, apesar de não ser estritamente literal, entretanto, expressa o verdadeiro significado da passagem e a verdadeira doutrina da encarnação de uma forma bíblica, reformada e conservadora que contribui para a honra e a glória de Deus. Ela aponta aos homens e mulheres a verdade da pessoa e obra de nosso Senhor Jesus Cristo, que fez a si mesmo de nenhuma reputação ao assumir a forma de servo para trazer salvação ao Seu povo.

Fonte: https://www.tbsbibles.org/page/Philippians2v7

 

Traduzido em Português por Ícaro Alencar de Oliveira.
Rio Branco, Acre, 27 de março de 2023.

 


Notas finais

[1] Nota à edição brasileira: no original inglês, foram citadas “a New American Standard Bible [Nova Bíblia Padrão Americana], a American Standard Version [Versão Padrão Americana], a Revised Standard Version [Versão Padrão Revisada], a Revised Version [Versão Revisada], a John Nelson Darby Version [Versão de John Nelson Darby] e a Modern Language Bible [Bíblia na Linguagem Moderna]”. Optou-se por citar as edições mais ou menos equivalentes em língua portuguesa. Todas as vezes em que fora mencionada a Versão Autorizada da Bíblia King James, adaptou-se para Almeida Corrigida Fiel, sua equivalente em língua portuguesa.

[2] Nota à edição brasileira: no original inglês, foram citadas: “New International Version [Nova Versão Internacional em inglês], the New English Bible [Nova Bíblia Inglesa], the Revised English Bible [Bíblia Inglesa Revisada], the New Century Version [Versão Novo Século] and the New Living Translation [Tradução Nova Vida]”. Optou-se por citar as edições mais ou menos equivalentes em língua portuguesa.

[3] Veja a seção intitulada Tradução Incomum no artigo da Sociedade, New International Version: What today’s Christian needs to know about the NIV [Nova Versão Internacional: O que o cristão de hoje precisa saber sobre a NVI], para mais informações.

[4] Louis Berkhof, Systematic Theology [Teologia Sistemática], 4ª ed. revisada e ampliada (Grand Rapids, MI, EUA: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1976).

[5] William Hendriksen, New Testament Commentary: Philippians, Colossians and Philemon [Comentário do Novo Testamento: Filipenses, Colossenses e Filemom] (Grand Rapids, MI, EUA: Baker Book House, 1979).

[6] Berkhof, p. 238; Hendriksen, p. 106.

[7] B. B. Warfield, Biblical Doctrines [Doutrinas Bíblicas] (Edimburgo, Escócia: The Banner of Truth Trust, 1988), pp. 178-9.

[8] Ibid., pp. 180-1.

[9] Ibid., pág. 181.

[10] John Murray, The Collected Writings of John Murray [Escritos Compilados de John Murray], 4 vols. (Edimburgo, Escócia: The Banner of Truth Trust, 1982), 3.359-60.

[11] Ibid., 3.238.

Este artigo foi originalmente publicado no Quarterly Record no. 538, janeiro a março de 1997. Traduzido em português por Ícaro Alencar de Oliveira. Rio Branco, Acre: 27 de março de 2023.

Copyright © 1997 Trinitarian Bible Society.

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